1981: O ANO QUE NÃO TERMINOU EM SANTA CRUZ

                        “Uma tragédia contada por quem resistiu às águas do Trairi”

Para toda uma geração, a data de 1º de abril de 1981 ficou marcada para sempre em Santa Cruz. Aquela cidade, com pouco mais de 13 mil habitantes, era notável por sua história, mas ainda preservava um ambiente em que “todos conheciam todos”, bem diferente da cidade atual, repleta de novos rostos a cada dia. Era um tempo pacato, chuvoso entre janeiro e março. A rotina seguia com boas conversas nas calçadas e uma novidade importante: a instalação do Campus de Caiçarinha, da Universidade, naquele mesmo ano de 1981.

Um ônibus saía da cidade até o Campus, todas as tardes e noites dos dias letivos, e atravessava uma estrada que foi ampliada para garantir o melhor acesso até o Núcleo de Ensino Superior do Trairi. A estrada carroçável atravessava o riacho da Caiçarinha, no setor ao norte da cidade e é conhecido pelo seu alto volume em tempo chuvoso, sendo uma via de ligação para comunidades que estão mais próximas do município de Sítio Novo. Até pouco tempo atrás era possível ver algumas paredes do que foi o Campus de Caiçarinha, hoje resta apenas um pouco das suas fundações.

No dia 1º de abril teve uma manhã quente e ensolarada, mas, por volta das 15h, o “tempo começou a fechar”. Algumas pessoas comentavam como tudo mudou de repente, pediram então aos professores para saírem mais cedo com receio de pegar a estrada com muita chuva ou o riacho mais cheio. Por volta das 16h, já sob chuva fina e com aparência de fim de tarde, os alunos voltaram para casa. Parecia que a noite já tinha chegado, como se já tivesse passado das 18h.

A 26 km dali, em Campo Redondo, por volta das 15h30, o Açude Mãe D’Água recebia um volume de água muito acima da sua capacidade. Pequenos açudes transbordaram ou romperam, direcionando a força das águas para açude daquela cidade, que não suportou e rompeu no final da tarde, com uma lâmina acima de um metro e meio. Foram cinco milhões de metros cúbicos jogados no Rio Trairi.

No meio de tudo isso, a aluna do curso de Licenciatura em Letras, Língua Portuguesa, Lúcia de Fátima, era uma entre muitos na iminência do desastre. As últimas semanas chuvosas não eram alerta para ela, mas o açude sempre foi um fantasma para a população em geral. “Sempre se falou que o açude poderia estourar, mas ninguém imaginava isso acontecendo”.

Quando mais jovem, por volta de 1976, brincava assustando os seus primos sobre uma possível enchente. “Cuidado, porque de noite vocês podem acordar com a rede embaixo d’água”. Os primos ficavam preocupados, e muitas vezes à noite acordavam assustados em noites de chuva e tocavam o chão com medo da água. Pouco mais de quatro anos depois, as águas do Trairi realmente invadiriam o quarto que dormiam.

Ao retornar da faculdade, Lúcia ajudou sua tia a retirar a água acumulada na casa. Na Avenida Rio Branco, ainda não existiam as atuais galerias. Havia muitas craibeiras, e o riacho tinha o escoamento precário. A chuva o fazia subir rapidamente. Naquele dia, o riacho aumentou o seu volume pela chuva que caía. A água voltava pelos ralos.

Joana Darc, a tia de Lúcia, tentava retirar a água, sugeriu parar e jantar cedo. “Eu fiz sopa”, disse sua tia, que recomendou retornar ao trabalho depois. Após a sopa, por volta das 18h10, a tranquilidade chegava ao fim.

Enquanto organizavam a casa para o início da noite que se aproximava, outra escuridão também estava bem ali, que ecoava na voz do Padre Raimundo, pároco da cidade. Lúcia foi até a calçada para ouvir melhor, pois o barulho da chuva atrapalhava. Quando chegou lá fora, ouviu o lamento da sua vizinha, Margarida, que logo transmitiu o recado do sacerdote: “O Açude de Campo Redondo estourou, corram para lugares altos. O nosso açude não vai aguentar”.

A casa onde moravam, com paredes espessas e estrutura antiga, parecia segura, tinha estilo bem antigo, com 10 metros de altura até a cumieira. Ali dentro, Lúcia avisou a todos. O tio Joaquim não sabia o que dizer, sua prima Rejane entrou em choque, sua avó Maria já apresentava sinais da velhice, em negação mandou não acreditarem naquilo. Joana não deixou essa negação prevalecer, e insistiu para que todos saíssem dali.

A família conta que a casa foi uma das primeiras da rua, nos primeiros anos de 1900, e um parente comentou que caso o açude rompesse aquela casa seria atingida. O fantasma do açude existia, quase ninguém acreditava que de fato fosse acontecer. Na casa de Lúcia todos pensavam assim, até aquele momento. O relógio marcava 18h30.

A rua Eloy de Souza encheu-se de pessoas e veículos tentando escapar. Eram roupas e objetos pessoais em fugas até um lugar seguro. Iniciava uma corrida para se salvar, quais os lugares mais altos? A Igreja Matriz, no alto de uma colina da margem esquerda do Rio Trairi, era refúgio certo, mas o restante do centro, em áreas baixas, seria logo inundado. O relógio corria junto com as águas.

No início daquela noite, mais do que o dobro da capacidade do açude estava sendo represada por uma parede cheia de algarobas e formigueiros. Deteriorado, o maciço rompeu em duas partes e jogou 12 milhões de metros cúbicos de água por dezenas de ruas de uma vez. A escuridão da noite era banhada com as águas, que seguiram seus caminhos, no bom e velho ditado popular: “água não tem cabelo”.

As ruas começaram a inundar, Lúcia correu cerca de 180 metros até a Câmara Municipal, que funcionava na Praça Coronel Ezequiel Mergelino, onde durante muito tempo foi a biblioteca pública. Lá, encontrou o presidente da casa, Geraldo de Tico, e pediu abrigo. Além de funcionária da Câmara Municipal, Lúcia seria sua moradora por mais cinco meses, junto com seus familiares. Naquele dia era a sessão plenária, mas foi cancelada em virtude da emergência que a cidade passava.

Quando descia aquela rua, um carro tocava:

“Hoje eu tive um sonho que foi o mais bonito
Que eu sonhei em toda a minha vida
Sonhei que todo mundo vivia preocupado
Tentando encontrar uma saída
Quando em minha porta alguém tocou
Sem que ela se abrisse ele entrou
E era algo tão divino, luz em forma de menino
Que uma canção me ensinou”

A música em questão era “Guerra dos Meninos”, de Roberto Carlos, do álbum de 1980. Ao ouvi-la, Lúcia sentiu algo ruim, e verbalizou para o condutor do veículo, que nada entendeu a reclamação dela. O sonho que ela vivia naquele momento era um pesadelo.

Desceu a rua, voltou para casa, encontrou o riacho da Rio Branco com um volume ainda maior, e a calçada de sua casa já tinha água. Combinou com a sua vizinha Margarida que iriam para o abrigo, a Câmara. Com alguns pertences e roupas, a vizinha seguiu com três crianças, pois o seu marido estava trabalhando e não estava na cidade.

Os familiares de Lúcia já estavam com todos os objetos reunidos, prontos para sair. Ela retornou para a praça de táxi, distante cerca 160 metros, no mesmo lugar atual. Não encontrou nenhum e voltou, já encontrando uma rua quase vazia, pois em questão de minutos todos fugiram para locais seguros.

Quando chegou na porta de casa percebeu que o nível da água continuava subindo, e encontrou um fusca amarelo, com o seu cunhado, Toinho, que levou todos para a Câmara Municipal. Já abrigados, perceberam que haviam esquecido o remédio de Dona Maria, ou como chamavam a matriarca da família, Dona Mariinha. Voltaram à casa, Lúcia e seu cunhado, uma chuvinha fina ainda caía, quando estava prestes a abrir a porta, as luzes da cidade se apagaram. O Rio Trairi tinha levado as torres de energia elétrica.

Recorte do jornal da época

Santa Cruz deixou todo o Rio Grande do Norte às escuras, isso porque a cidade era a “chave geral” da energia do estado, quando era a ligação até Paulo Afonso/BA das redes de energia. Era a escuridão total, não apenas a luz elétrica, mas o sufoco para sobreviver naquela catástrofe. Toinho posicionou o carro e os faróis daquele fusca iluminavam parte do interior da casa, os ponteiros do relógio marcavam 19 horas.

Lúcia sabia de olhos fechados onde estava o remédio. Seus olhos estavam bem abertos, porém tudo estava escuro naquela noite de lua minguante. Um remédio da caixa rosa, Iskemil, que estava sobre um armário azul na cozinha. Toinho logo viu uma radiola e dezenas de discos de vinil, que ela nem fez questão de levar, mas ele colocou tudo no carro e seguiu viagem, na contramão, pois naquela hora a regra era fugir das águas.

Do outro lado do rio, o bairro do Paraíso era varrido pelas águas, como outras ruas no entorno do Riacho do Pecado, e partes mais baixas da cidade. A colina da Igreja Matriz era uma ilha, o Padre Raimundo acolhia os desabrigados, muitos em preces naquela vigília de uma longa noite sem fim. A cidade estava escura e o único som ali era o da água; cidade e rio eram um só. O Trairi tomou para si quase metade do centro da cidade, junto com tantos sonhos e suor de trabalho. Uma tragédia anunciada, mas nunca levada a sério.

Outras três famílias chegaram na Câmara Municipal, casais, crianças, cachorros, gatos e até papagaio ficaram naquela noite ali. A delegacia também se instalou no prédio, ficando no primeiro cômodo. Lúcia acomodou sua família, se encontraram com Geisa, que morava ao lado da Câmara, e procuraram tomar um chá de erva doce para acalmarem os ânimos. Geisa disse: “vão-se os anéis e ficam os dedos. Estamos todos vivos, isso é o que importa”. Ela chegou a dizer tempos depois a Joana, que foi um bom período aqueles cinco meses de convivência dela e sua família.

O esposo de Margarida chegou na Câmara, cidade pequena, todos informaram a localização dela. Depois foi olhar as águas, voltou e disse a Lúcia: “As águas cobriram o janelão da sua casa”. Passava das 20h, a marca do nível da água era de 2,30 metros na casa dela. O que poderia ter sobrado? Ela lembrou dos seus dois gatos que ficaram em casa, um era amarelo e outro preto e branco. O nome do gato amarelo era peculiar, seu nome era Pororoca. Parecia este relato um combo de ironias, mas o nome do felino é derivado do Tupi, que designa “estrondo”, e é conhecido como fenômeno natural onde acontece o encontro das águas de um rio com o oceano, especialmente nas mudanças de fase da lua, e aquele período era transição da minguante para nova.

Quando as badaladas do relógio anunciavam que eram 22h, Lúcia, Joaquim e Rejane desceram a Eloy de Souza, os faróis dos carros jogavam luz nas casas e naquele “grande rio” formado ali. O nível da água era de 1,5 metro, as águas retrocediam, o Rio Trairi voltava para o seu lugar. Próximo da casa de Iaponira, não era possível avançar mais, pois os pés ficavam presos naquela nova rua destruída pelas águas e tomada pela lama.

A enchente foi como uma “pororoca urbana”. As águas do rio encontram um oceano de casas e pessoas, levando tudo em seu caminho e deixando um rastro de choro. Lúcia foi dormir por volta das 23h, teve dificuldade para dormir, por várias vezes ouviu pessoas passando pela rua com os seus lamentos e prantos.

No dia seguinte, Margarida e sua família mudou-se para o Conjunto Aluízio Bezerra, que tinha sido construído perto do açude, porém do lado alto, no final da Rua Caminha Fiúza. O conjunto não foi atingido pela enchente, pois fica do outro lado do açude, no caminho contrário ao curso do rio. As outras famílias que estavam na Câmara procuraram se abrigar ou ocupar lugares que lhe garantissem acesso aos direitos deles. Muitos foram se inscrever para ganhar novas moradias.

Às 4h, Joaquim voltou à casa, agora coberta de lama e reboco nas pareces. Lúcia chegou às 5h. A construção antiga resistiu: paredes espessas, erguidas com zelo por Joaquim Loureço de Carvalho, patriarca de uma grande família de Sítio Novo. Essa casa resiste há mais de um século, com as mesmas paredes sobreviventes de uma enchente.

Rua Eloy de Souza, dia seguinte após a enchente

Alguns quadros foram embora, outros móveis foram recuperados, objetos foram limpos, e o que mais chamou atenção: A imagem do Sagrado Coração de Jesus permaneceu na parede, não foi levado pelas águas. Símbolo da fé da família, tornou-se troféu de resistência. As pessoas diziam para ela sair da casa, pois muitas já haviam desabado naquela manhã. Ela negou! “Eu não vou sair daqui até tirar tudo. E aquela imagem [Sagrado Coração] será a última a sair da casa”.

Após cinco meses, a casa foi restaurada e voltou a abrigar Mariinha, Joana, Rejane, Joaquim e Lúcia. Mas as marcas da enchente jamais se apagaram. Todo dia 1º de abril, Lúcia conta com detalhes como foi aquele dia. As chuvas de 2024 fizeram Lúcia lembrar do fantasma da enchente, com medo que os açudes rompam novamente.

Lúcia carrega na memória a visão de uma rua cinzenta e cheia de lama. O som da casa próxima da sua desabando, ou ainda a Camilo José da Rocha, em que as casas não tinham mais paredes, só era possível diferenciar cada uma pelo piso, pois as águas levaram tudo. Em certo momento, o rio Trairi virou um depósito de botijões de gás, sofás e vários móveis. Tudo desaguou longe.

Dias depois seria a Semana Santa, momento que a cidade passava pela sua “via crucis”. Em maio, a Festa de Santa Rita foi bem simples, sem muitas comemorações, e a procissão foi de muita emoção, pelo período calamitoso. Por onde a imagem de Santa Rita passava, ouviam-se preces de dias melhores e muitas lágrimas. A enchente e a pandemia de covid foram momentos em que a procissão de Santa Rita foi uma grande corrente de oração e esperança, com o pedido da intercessão da padroeira.

A enchente de 1981 precisa ser contada todos os anos, e seria fácil contá-la a partir do ângulo político ou da Igreja. A reconstrução da cidade passou pelas mãos de várias Lúcias, Marias, Joanas, Joaquins e tantos que trabalharam incansavelmente para recuperar sua vida e sua cidade. Muitos outros anônimos fizeram parte, não são as comendas que contam as histórias, cada experiência particular conta um pedaço do que foi 1981.

Edição do Diário de Natal, em 1981

É preciso manter os açudes em condições dignas, não ocupar áreas inundáveis, manter o alerta em período chuvoso. Em 1981, uma telefonista Fátima, lá de Campo Redondo, salvou esta cidade de Santa Cruz. Hoje, será que as redes sociais nos salvariam ou nos levariam ao caos?

1981 nunca acabou. Vive na memória de quem enfrentou aquele dia, é uma lição contada para a minha geração. Uma cidade que foi destruída pelas águas e reconstruída pelo trabalho e pela fé de um povo.

Santa Cruz existe. Santa Cruz resiste!

Foto: Canindé Soares

https://wsantacruz.com.br/
1981: O ANO QUE NÃO TERMINOU EM SANTA CRUZ 1981: O ANO QUE NÃO TERMINOU EM SANTA CRUZ Reviewed by Erivan Justino on terça-feira, abril 01, 2025 Rating: 5

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